Cíntia Bomfim viu seu filho mais velho receber dois tiros de bala de borracha de policiais durante um protesto comunitário esta semana no Moinho, a última favela do centro de São Paulo, que está prestes a desaparecer por decisão do governo estadual.
Dois dias depois, esta moradora de 39 anos recebeu a notícia de que lhe será entregue uma casa em troca de deixar a favela, assim como aconteceu com os outros moradores: é o preço que as autoridades vão pagar para liberar o terreno, como parte de um plano de renovação da região central da cidade mais rica e populosa da América Latina.
A proposta de solução aos moradores chegou a esta localidade pobre na quinta-feira, após muitos dias de resistência da comunidade em meio à violenta intervenção policial para garantir a segurança das operações de despejo.
No centro de São Paulo, uma megalópole de 12 milhões de habitantes, coexistem bares e restaurantes da moda com condomínios populares, famílias sem-teto e áreas dominadas pelo tráfico de drogas.
A oposição afirma que a decisão de remover o Moinho, onde vivem cerca de 900 famílias, é parte de uma “higienização” para deslocar os mais pobres e favorecer a especulação imobiliária na região.
As autoridades anunciaram a construção de um futuro parque no terreno, com uma superfície equivalente a três campos de futebol e situado entre duas vias de trens e um viaduto.
“Se eu tiver que sair, quero algo melhor, porque foram anos aqui dentro para ter isso e não foi de graça”, disse Bomfim à AFP, antes do acordo e em meio a um forte dispositivo policial para reprimir protestos e inabilitar casas já desocupadas.
A Polícia Militar lançou gás lacrimogênio e disparou balas de borracha contra os moradores, constatou a AFP, que também viu agentes apontando armas de fogo contra alguns deles.
As forças de segurança adentraram com cães em algumas casas, supostamente em busca de drogas e armas.
O governo do estado de São Paulo afirmou que o “crime organizado” estava por trás da resistência à remoção, uma acusação que os moradores desmentem.
“Eu não vim morar aqui porque quis: antes eu trabalhava vendendo bala no farol [semáforo] e não podia pagar aluguel lá fora”, acrescentou Bomfim, dona de uma pequena padaria no Moinho, e moradora há 18 anos.
‘Uma conquista muito aguardada’
Surgida nos anos 1990, a favela do Moinho é a única que resiste no centro, após a remoção progressiva nas últimas décadas de outras comunidades e ocupações de pessoas menos favorecidas, de tamanho menor que as enormes comunidades da periferia paulista.
“O centro de São Paulo é uma das áreas com metro quadrado mais caro do estado e é objetivo de grande especulação imobiliária, o que pressiona pela expulsão de pessoas pobres, negras e periféricas”, afirma a deputada estadual Paula Nunes, do partido de oposição PSOL.
Os governos federal e estadual vão financiar a entrega de 250 mil reais a cada família do Moinho para a compra de casas depois que deixarem a favela.
“A gratuidade [das novas casas] é uma conquista muito aguardada e importante”, comemora Yasmim Moja, da associação de moradores.
A oferta corrige uma proposta inicial de concessão de linhas de crédito, considerada inviável pelos moradores, que a rechaçaram com manifestações no Moinho, que incluíram interrupções nas vias de trens.
De Tarcísio a Lula
O caso de Moinho provocou uma disputa incomum entre os governos de dois possíveis candidatos nas eleições presidenciais de 2026: o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), aliado do ex-presidente Jair Bolsonaro, e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
O terreno da favela pertence à União, que aceitou cedê-lo ao estado de São Paulo com a condição de que garantisse residências dignas aos moradores.
No entanto, em meio à intervenção policial, o governo federal anunciou esta semana que paralisaria a transferência enquanto não se cumprir “um processo de desocupação negociado com a comunidade e transparente”.
Por fim, os dois governos chegaram a um acordo para financiar em conjunto a entrega de casas aos moradores, que conseguiram visibilidade no coração de uma das maiores cidades do mundo.
Fonte: Exame