Uma nave espacial foi enviada para atingir um cometa que se aproximava da Terra. Parece cena de ficção, e até foi, no filme Impacto Profundo de 1998. Mas 20 anos atrás, a ficção se tornou realidade. Só que enquanto no filme, a colisão com o cometa salvou a humanidade da extinção, na vida real, ela nos trouxe pistas valiosas sobre a origem da vida em nosso planeta.
A década de 90 foi um período marcado por profundas mudanças sociais e políticas. O fim da Guerra Fria, do Apartheid, e o boom da internet… ganhamos o Nokia tijolão e nos livramos das pochetes e do Sérgio Malandro (ao menos temporariamente). Mas os anos 90 também marcaram uma virada na forma como encaramos os perigos vindos do espaço. O cometa Shoemaker-Levy 9 atingindo Júpiter em 1994 alertou a humanidade sobre os grandes impactos que ainda ocorrem no Sistema Solar. Não é coincidência que dois filmes lançados em 98, Armageddon e Impacto Profundo, tinham como tema a saga de cientistas e astronautas para defender a humanidade de um cometa em rota de colisão com a Terra. Sete anos depois, em 2005, a NASA lançava ao espaço a Missão Impacto Profundo — não para salvar o planeta, mas para entender melhor o universo.
A proposta era ousada: lançar uma nave em direção ao cometa 9P/Tempel 1, soltar um impactador e… bum! Produzir uma colisão controlada a quase 37 mil km/h. A ideia não era desviar o cometa, muito menos destruí-lo — mas sim levantar poeira. Uma poeira que poderia nos revelar os segredos mais profundos de nossa origem cósmica. Ao bater no cometa, o impactador levantaria material do interior que poderia ser analisado por instrumentos da própria sonda e também por telescópios na Terra e no espaço. Tudo cuidadosamente planejado para arrancar do cometa um pedaço da história do Sistema Solar.
A missão foi lançada em um foguete Delta II, em janeiro de 2005 de Cabo Canaveral, na Flórida. A nave era composta de um módulo impactador — um cilindro de 370 quilos de cobre, sem escudo térmico, sem GPS e com o glorioso destino de virar paçoca cósmica — e a nave principal, equipada com câmeras e instrumentos para observar tudo de camarote. Quando o impactador foi liberado, no dia 3 de julho, iniciou-se uma coreografia milimetricamente calculada: o cometa vinha de um lado e o impactador na contramão. Ambos bateriam de frente no dia seguinte, numa colisão histórica.
E foi o que aconteceu. No dia 4 de julho de 2005, no Dia da Independência dos Estados Unidos, o impactador atingiu em cheio o núcleo do cometa Tempel 1. Durante sua manobra ‘kamikaze’ rumo ao cometa, o módulo impactador transmitiu imagens ao centro de controle usando uma câmera onboard. Já o momento da colisão foi acompanhado pelas câmeras da sonda principal, que estava “mais inteira” na hora. A energia do impacto foi equivalente a cerca de 5 toneladas de TNT — uma explosão modesta para os padrões apocalípticos de Hollywood, mas um feito monumental para a ciência.
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Para o Tempel 1, com seus 7,5 quilômetros de comprimento e cerca de 75 milhões de toneladas, aquela explosão foi como um estalinho de festa junina. Não tinha a capacidade de causar danos maiores e nem de alterar minimamente a sua órbita. Entretanto, gerou uma cratera de 150 metros e uma nuvem de detritos foi lançada ao espaço, formando uma pluma brilhante de poeira e gás que pôde ser observada por telescópios em vários pontos do planeta. O mundo todo assistia, maravilhado, ao primeiro impacto interplanetário causado pela humanidade.
E o que esse “peteleco científico” revelou? Muito mais do que se imaginava. As análises mostraram que o interior do cometa era extremamente poroso, com mais gelo do que se pensava, além de compostos orgânicos complexos — os mesmos blocos fundamentais da vida. Isso fortaleceu a hipótese de que os cometas podem ter trazido para a Terra primitiva os ingredientes para a receita da vida em nosso planeta.
Mas o impacto também deixou marcas na história da exploração espacial. Foi a primeira vez que interferimos fisicamente num cometa — de forma intencional e bem-sucedida. A missão foi um marco não só para a ciência planetária, mas também para a engenharia espacial. E serviu como laboratório prático para futuras missões mais ousadas, como a Rosetta, que pousou no cometa 67P/Churyumov-Gerassimenko em 2014, e a missão DART, que em 2022 colidiu com o asteroide Dimorphos para testar a nossa capacidade de desviar um asteroide em rota de colisão com a Terra. A ficção, mais uma vez, inspirou a ciência. E a ciência, por sua vez, superou a ficção — com menos explosões, mas muito mais informações.
A sonda Impacto Profundo continuou operando por alguns anos depois de atingir o Tempel 1, em missões estendidas com outros alvos, até perder contato em 2013. Mas seu legado permanece. Mostrou que somos capazes de interceptar objetos a centenas de milhões de quilômetros de distância, estudar sua composição e, quem sabe, um dia, nos protegermos deles. Foi um divisor de águas — e de poeira — no modo como olhamos para esses corpos gelados que cruzam o Sistema Solar nos contando sobre nosso passado e nos ajudando a escrever as páginas do nosso futuro.
E é por isso que, nesta semana do Asteroid Day, vale lembrar da missão Impacto Profundo não como um espetáculo hollywoodiano, mas como uma demonstração real do poder da ciência quando ousamos ir além. Também é curioso, ou no mínimo engraçado, que antes que qualquer cometa pudesse pôr em risco a nossa civilização, fomos nós, humanos, que acertamos um cometa primeiro.
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Fonte: Olhar Digital