Em discurso na abertura da reunião de ministros das Relações Exteriores do Brics, no Rio de Janeiro, o chanceler brasileiro, Mauro Vieira, afirmou que o bloco possui um papel central em um cenário internacional cada vez mais complexo, com guerras longe do fim — inclusive envolvendo membros do grupo — e turbulências econômicas protagonizadas pelos EUA de Donald Trump.
— O caminho para a paz não é fácil nem linear, mas o Brics pode e deve ser uma força para o bem — afirmou Vieira antes da primeira reunião, no Palácio do Itamaraty. — Não como um bloco de confronto, mas como uma correção e cooperação. Devemos liberar pelo exemplo, reafirmando nossa crença em um mundo multipolar, onde a segurança não é privilégio de poucos, mas um direito de todos.
Para o chanceler, a “expansão do Brics fortaleceu a plataforma para responder a desafios”, se referindo à entrada de seis novos membros nos últimos dois anos, além dos nove países parceiros.
— Com onze Estados-membros representando quase metade da humanidade e uma ampla diversidade geográfica e cultural, o Brics está em posição única para promover a paz e a estabilidade baseadas no diálogo, no desenvolvimento e na cooperação multilateral — afirmou. — O Brics, como grupo, reconhece os interesses estratégicos e os legítimos interesses econômicos e de segurança de cada membro, tanto em suas respectivas regiões quanto em todo o mundo.
Vieira destinou críticas à operação militar israelense na Faixa de Gaza, intensificada após o fracasso do cessar-fogo firmado em janeiro. Para ele, a situação no enclave é “devastadora”, e “continua sendo uma fonte de profunda preocupação”.
—A retomada dos bombardeios israelenses em Gaza e a obstrução contínua da ajuda humanitária são inaceitáveis — disse o chanceler. — Instamos as partes a cumprir integralmente os termos do acordo e a se engajarem de boa fé em prol de uma cessação permanente das hostilidades.
O diplomata considerou ser necessária a “retirada total das forças israelenses de Gaza, assegurar a libertação de todos os reféns e perdidos e garantir a entrada de assistência humanitária”, e defendeu a solução de Dois Estados, seguindo uma histórica linha da diplomacia brasileira.
Se a menção ao conflito em Gaza foi extensa, o mesmo não se pode dizer sobre a guerra na Ucrânia, protagonizada por um dos fundadores do Brics, a Rússia. Vieira disse que o único caminho para a paz é “uma solução diplomática que defenda os princípios e os propósitos da Carta das Nações Unidas”.
No ano passado, Brasil e China apresentaram uma proposta para a resolução da guerra iniciada em fevereiro de 2022, composto por seis pontos que incluíam a defesa do diálogo entre as partes, a realização de uma conferência de paz “em momento apropriado”, o acesso à ajuda humanitária, o fim de ataques a infraestruturas como usinas nucleares e o rechaço à “divisão do mundo em grupos políticos ou econômicos isolados”. Em setembro de 2024, os dois países criaram o chamado “Grupo de Amigos da Paz”, composto também por outras nações do chamado Sul Global.
O plano chegou a ser elogiado pelo presidente russo, Vladimir Putin, mas o líder ucraniano, Volodymyr Zelensky, disse que a proposta não trazia “nada de concreto”. A fala de Vieira ocorre em meio a sinais diplomáticos confusos vindos de Moscou e Kiev e também de Washington.
O presidente americano, Donald Trump, que havia prometido encerrar a guerra “em 24 horas” parece cada vez menos interessado nas negociações — no fim de semana, em sua rede social, o Truth Social, ele disse que Putin “talvez não queira parar a guerra”. Há pouco mais de uma semana, sugeriu que poderia abandonar as conversas caso não haja avanços palpáveis.
O discurso ainda trouxe uma defesa contundente do multilateralismo, no momento em que o papel das instituições internacionais sofre duros questionamentos e golpes, vindos especialmente de Washington
— Enfrentamos crises globais e regionais convergentes, com emergências humanitárias, conflitos armados, instabilidade política e aerosão do multilateralismo — disse Vieira — Essas crises desafiam os próprios fundamentos da paz e da segurança internacionais e exigem um compromisso renovado com a ação coletiva.
Ele reiterou a necessidade de reformas em órgãos como o Conselho de Segurança da ONU, “para melhor refletir as realidades geopolíticas contemporâneas” — dois dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança, Rússia e China, integram o Brics — e a importância da diplomacia para evitar crises.
— O Brics tem um papel central a desempenhar no cenário internacional — disse Vieira. — Devemos fortalecer a diplomacia preventiva. Crises surgem frequentemente na ausência de desenvolvimento e diálogo inclusivos. Investir na paz significa abordar as causas profundas da instabilidade, pobreza e desigualdade.
Ao longo das três reuniões previstas, os representantes de Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul, Irã, Etiópia, Emirados Árabes Unidos, Indonésia, Arábia Saudita e Egito devem tentar emitir posições coesas em um comunicado que, segundo fontes do Itamaraty ouvidas pelo GLOBO, teve poucas divergências em sua elaboração.
A grande expectativa é sobre a posição do bloco sobre o tarifaço de Trump, que tem na China seu maior adversário. Horas antes da fala de Mauro Vieira, o governo chinês negou que o presidente Xi Jinping tenha conversado por telefone com Trump, como alegou o presidente americano, e disse que não há negociações em curso com Washington, como também havia anunciado em mais de uma ocasião o republicano.
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