Tudo começa com o que bombasticamente a Casa Branca alardeou como o “liberation day”: o anúncio de uma nova política comercial, mas com vistas a redefinir o sistema monetário internacional. Eram ambições gigantescas, em linha com a hiperatividade que o presidente Trump vinha exibindo em outras áreas.
Mas os anúncios foram confusos e mal-recebidos. Os recuos foram rocambolescos, como nos piores momentos de pacotes mal amarrados, como se viu no Brasil em muitas ocasiões.
No final de abril, quase tudo estava suspenso ou cancelado, mas nem por isso o mundo estava de volta à posição do começo do mês. A guerra comercial com a China estava sobre a mesa e a percepção média sobre as tarifas é de que foi dos maiores fiascos de política econômica dos últimos anos.
Os indicadores confiança pioraram. Algumas cogitações da nova administração – como a de um “bônus centenário” em swap compulsório para os países que são detentores de treauries, ou como uma “taxa de utilização” pelo dólar como moeda internacional de reserva – soavam aterradoras.
Os norte-americanos pareciam flertar com ideias ruins típicas de economias emergentes sob estresse. Na verdade, é difícil conceber alguma medida muito heterodoxa e atrapalhada que já não tenha sido experimentada no Brasil. O discurso protecionista de Trump é muito parecido com o que se encontra no Brasil, nessa administração Lula 3, por exemplo, ao se percorrer as falas e a documentação do programa “Nova Indústria Brasil” (NIB), que propunha o que se chamou de “neoindustrialização”.
Junte-se a isso as arengas de Trump com Jerome Powell (o presidente do Fed), que são exatamente como as que vimos no Brasil entre o presidente Lula e Roberto Campos Neto.
Mas Trump recuou.
Os analistas se repetem ao afirmar que prevalece uma imensa incerteza sobre os próximos passos. O ex-ministro Pedro Malan fez o melhor comentário: “faltam quase 200 semanas, é assustador”. A isso acrescentou uma frase de Amos Tversky, um dos pioneiros da “economia comportamental”: “É assustador imaginar que não sabemos algo, mas mais assustador ainda é imaginar que, em geral, o mundo é dirigido por pessoas que acreditam saber exatamente o que está acontecendo”.
Há uma impressão generalizada sobre maior incerteza em relação aos rumos da economia americana, e consequentemente da economia global, em decorrência do que parece ser uma fase de improviso que se inaugura depois do fracasso dos anúncios do “liberation day”.
Excepcionalismo americano
Errar nos EUA não é como errar nas políticas econômicas de uma economia emergente, ou periférica. Vale refletir sobre a diferença, que tem a ver com isso que se conhece como o “excepcionalismo americano”, a expressão que normalmente se usa para designar a posição única da economia americana seja pelo tamanho, seja (principalmente) pela posição que veio a ter o dólar, como a moeda internacional de referência, moeda da economia central.
A posição do dólar já foi descrita como “privilégio exorbitante”, pois permite ao país pagar suas contas internacionais imprimindo sua própria moeda, coletando senhoriagem do resto do mundo. Os EUA não precisam ter reservas internacionais e todos os outros países guardam “reservas internacionais” em títulos denominados em dólar, geralmente do Tesouro Americano.
O Banco Central do Brasil (BCB) tinha em março reservas internacionais de US$ 336,2 bilhões, dos quais US$ 279,4 bilhões estava alocada em títulos. A China reporta US$ 780 bilhões, mas já foi mais de US$ 2,0 trilhões, e o Japão 1,2 trilhão em títulos do Tesouro Americano.
É bom para o EUA, que se aproveita de interessados em adquirir seus títulos, com isso mantendo uma política fiscal mais folgada do que o resto do mundo. O problema é que o estoque de treasuries fora dos EUA já é grande e se qualquer desses grandes tomadores começar a vender, o resultado será o de interferir com a curva de juros americana. Segue-se do privilégio exorbitante que se perde um tanto de autonomia na política monetária e fiscal, mas nada que devesse incomodar.
Outro aspecto interessante do excepcionalismo americano é que, em bases regulares, os EUA devem “exportar” títulos do Tesouro Americano como quem abastece a economia internacional de liquidez, atendendo a demanda internacional por reservas. Para cumprir essa função, no entanto, os EUA precisam, idealmente, manter um superávit em conta corrente no seu balanço de pagamentos que permita que sua conta de capitais fique cronicamente negativa.
Foi exatamente o descompasso entre conta corrente e a conta de capitais que acabou comprometendo o sistema de Bretton Woods em seu desenho original e levando à saída dos EUA do padrão ouro em 1971. Mas mesmo sem conexão com o ouro o dólar continuou sendo a principal das moedas internacionais de reserva, situação que prosseguirá enquanto não houver um descompasso continuado entre a conta corrente – muito determinada pela atividade doméstica nos EUA – e a conta de capitais, que se orienta pela demanda global de ativos em dólar.
Muitos analistas percebem – e também, ao que tudo indica, a administração Trump – que existe um descompasso e que deveria ser endereçado por um enfraquecimento do dólar. Na falta de um diferencial positivo na taxa de crescimento da produtividade norte-americana, vis à vis o resto do mundo, a desvalorização do dólar é o caminho mais fácil para a redução do déficit em conta corrente dos EUA.
Mas aqui aparece outro problema decorrente do excepcionalismo americano: não é fácil produzir uma desvalorização do dólar.
Um país pequeno (para a economia global), como o Brasil, faz desvalorizações cambiais facilmente, operando sua própria moeda contra o dólar. Washington nem percebe.
É totalmente diferente se os EUA resolverem desvalorizar sua moeda, por exemplo, relativamente ao yen. Os americanos teriam que vender dólares contra yens, o que afetaria diretamente os japoneses, que, talvez, insatisfeitos com a ideia da apreciação de sua moeda, pudessem fazer o movimento inverso cancelando a intenção americana.
Países grandes não conseguem desvalorizar suas moedas uns com os outros senão quando o fazem de comum acordo. É outro problema com o privilégio exorbitante: é bom, mas há algumas limitações.
Foi exatamente assim em 1985 quando foi celebrado o famoso acordo de Plaza, firmado em Nova York no hotel com esse nome, pelo qual Japão, Alemanha Inglaterra e França concordaram e atuaram conjuntamente para que o dólar ficasse mais fraco, e cada uma dessas moedas ficasse mais forte.
Funcionou tão bem que tiveram de fazer outro acordo em 1987 para uma atuação conjunta para sustar a depreciação do dólar, desta vez com a adesão do Canadá.
O novo acordo
Em nossos dias, a China está na posição desses parceiros dos americanos no acordo de 1985, mas parece inconcebível que se fizesse uma combinação semelhante ao Acordo do Plaza. A China teria que ser parte da conversa, e não se trata propriamente de aliados militares, repletos de objetivos geopolíticos comuns, como o grupo de 1985.
O que fazer então para solucionar o descompasso americano entre a conta corrente e a conta de capitais?
A discussão específica desse assunto no ensaio amplamente divulgado[1] – do agora chefe do conselho de assessores econômicos (Council of Economic Advisors) do presidente Trump, Stephen Miran –levou ao plano de alteração nas tarifas americanas. A tese ficou conhecida na imprensa como o Acordo de Mar a Lago, em referência direta ao Acordo do Plaza.
O documento trata do assunto de “desvalorizações fiscais” do mesmo modo como assunto foi tratado no Brazil no passado, ou seja, trata-se de usar medidas tributárias – tarifas e subsídios – para criar uma proxy para uma desvalorização cambial: tarifas sobre importações e subsídios para exportações.
Seria, talvez, uma fórmula substituta para fortalecer a conta corrente, sem necessidade de acordo nem de atuação para desvalorizar o dólar.
No Brasil, a tese levou ao plano de desoneração da folha, parte do que ficou conhecido como a Nova Matriz Macroeconômica, com os resultados que se conhece. Mas será que funcionaria para os EUA?
A repercussão foi tão ruim, bem como os efeitos iniciais, que Trump recuou, e manteve apenas as medidas mais hostis voltadas especificamente para a China. Não é possível antecipar o que virá dessas conversas, que parecem ter se iniciado no final do mês.
Curiosamente, os mercados podem ter encurtado o caminho para um ajuste: nos mercados de câmbio já se especula sobre algum acordo, ainda que meramente tácito, de apreciação coordenada de moedas asiáticas, combinado com desvalorização do dólar, já que este foi o resultado espontâneo dos anúncios atrapalhados de Trump e sua equipe. Não é difícil chegar-se a um acordo sobre um resultado que os mercados já exibem.
Ou seja, Trump conseguiu uma depreciação do dólar, talvez a intenção original, mas do pior jeito, comprometendo a credibilidade do país. A ver.
[1] Stephen Miran – A User’s Guide to Restructuring the Global Trading System, Hudson Bay Capital, 2024.
Fonte: Exame