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Deus é um bilionário? Como a fé na tecnologia do futuro está atrasando soluções reais no presente

Poucas ideias têm tanto impacto no debate público atual quanto a convicção de que a tecnologia salvará a humanidade — seja da morte, da pobreza ou da própria Terra.

Essa expectativa não nasceu nas universidades ou em centros de pesquisa científica, mas no Vale do Silício. E é esse sistema de crenças que o físico e jornalista Adam Becker desmonta em More Everything Forever.

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O livro, publicado no fim de abril, se lança em uma investigação sobre como certas visões radicais do futuro — inteligência artificial autoconsciente, colônias espaciais, upload da mente — passaram de ficção científica para plano de ação empresarial, com apoio de capital de risco, doações filantrópicas e influência crescente em governos e políticas públicas.

Becker define essa visão como uma ideologia, não como um plano técnico. E estrutura sua crítica em três eixos: o reducionismo, a rentabilidade e a transcendência. A primeira característica é a tendência a simplificar problemas complexos — sociais, éticos, ambientais — em termos computacionais.

A segunda é o alinhamento com modelos de crescimento exponencial e retorno sobre investimento. A terceira, e mais perigosa, é a promessa de salvação: vencer a morte, abandonar o planeta ou garantir uma eternidade digital.

Deus é um bilionário? Como a fé na tecnologia do futuro está atrasando soluções reais no presente

Não se trata de exagero, escreve Becker, mas de um projeto concreto em expansão. Empresas e fundações ligadas a figuras como Sam Altman, Elon Musk, Peter Thiel e Ray Kurzweil canalizam recursos para pesquisas e iniciativas que buscam, por exemplo, prever cenários catastróficos de IA ou simular a consciência humana.

O que preocupa o autor não é a especulação científica em si, mas a forma como ela é usada como instrumento de autoridade — como se grandes fortunas e previsões visionárias dispensassem validação empírica.

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O livro argumenta que esses projetos de “futuro radical” já moldam o presente. Ideias como singularidade, superinteligência ou migração planetária não operam apenas em laboratórios ou nas redes sociais: elas influenciam políticas públicas, investimentos em pesquisa, diretrizes de segurança, distribuição de recursos filantrópicos e — talvez o mais grave — os limites do que a sociedade imagina como possível.

Becker alerta para o risco de que essa elite digital defina os termos do debate, estabelecendo o que é progresso, o que é ético e o que deve ser temido. Se o único risco existencial que importa é a revolta de máquinas ou a extinção cósmica, então problemas como desigualdade, fome e colapso climático viram distrações — ou, na linguagem do Vale, “questões locais”.

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O livro dedica menos páginas aos detalhes técnicos e mais ao imaginário por trás dos projetos. A ida para Marte, por exemplo, não é tratado como proposta de engenharia, mas como símbolo: da fuga, do heroísmo individualista, do direito à expansão sem limite.

A crítica não é só à viabilidade técnica — que Becker contesta com dados sobre radiação, logística e habitabilidade — mas à ideia de que abandonar a Terra seria uma solução desejável ou moralmente neutra.

Na inteligência artificial, a crítica segue lógica parecida. Em vez de focar apenas no debate entre otimistas e alarmistas, Becker sugere que ambos compartilham o mesmo erro: tratar a IA como inevitável, autônoma e imune a decisão política.

Ele argumenta que o problema central não é “se a IA vai nos matar”, mas quem decide o que essas máquinas farão, a quem elas servem e com base em que valores.

Um dos capítulos mais contundentes trata do movimento effective altruism, que propõe usar métricas para decidir como fazer o bem. A crítica de Becker é que, ao multiplicar probabilidades minúsculas de salvar bilhões de vidas futuras, esse sistema transforma problemas reais e urgentes — como malária ou insegurança alimentar — em causas de baixa prioridade.

Ele cita estimativas que colocam investimentos em segurança de IA como mais “efetivos” que qualquer intervenção de saúde pública hoje. A consequência, segundo o autor, é a legitimação de interesses empresariais como se fossem compromissos morais, calculados por equações supostamente neutras.

De volta à Terra

Apesar do título hiperbólico, More Everything Forever é um livro sobre limites. Contra a ideia de que mais tecnologia sempre significa mais progresso, Becker propõe mais atenção, mais responsabilidade e mais humildade. “Estamos aqui agora, num mundo com mais do que poderíamos razoavelmente pedir”, escreve.

“Podemos encontrar alegria nisso e sentido em tornar este mundo um pouco melhor para todos”. Em vez de imaginar a salvação por foguetes ou algoritmos, ele sugere outra rota: desacelerar, observar e cuidar do que já existe.

Ir para o conteúdo original: https://exame.com/inteligencia-artificial/deus-e-um-bilionario-como-a-fe-na-tecnologia-do-futuro-esta-atrasando-solucoes-reais-no-presente/

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