O consumo de narrativas zumbis e apocalípticas passou por transformações desde a pandemia de covid-19.
A série The Last of Us, inspirada no fungo real cordyceps e que retrata uma pandemia fictícia capaz de controlar o cérebro humano, mostra que o público ainda se interessa pelo tema, mas com nuances diferentes.
Recordes e crescimento histórico de audiência
Em janeiro de 2023, o episódio inaugural da série reuniu 4,7 milhões de espectadores, tornando-se a segunda maior estreia da HBO em mais de uma década, atrás apenas de House of the Dragon. O segundo episódio registrou um crescimento de 22%, alcançando 5,7 milhões de espectadores — o maior salto já registrado entre os dois primeiros episódios na história da emissora.
“A cada episódio, vimos o interesse crescer”, afirmou David Hughes, ecologista comportamental e consultor científico da produção à revista científica Nature. “No episódio final da primeira temporada, 8,2 milhões de pessoas estavam assistindo — isso mostra como a história ressoou com o público de forma profunda”, disse.
A média de espectadores por episódio, considerando as visualizações acumuladas em até 90 dias, atingiu 32 milhões, consolidando The Last of Us como uma das séries mais assistidas da HBO e Max.
A segunda temporada estreou em abril de 2025 com 5,3 milhões de espectadores, superando em 13% a estreia da primeira temporada.
Além disso, a semana anterior ao lançamento da nova temporada registrou um aumento de 150% nas reproduções da primeira temporada, sinalizando um interesse renovado.
“Esse engajamento mostra que, mesmo após a pandemia real, as pessoas continuam buscando esse tipo de narrativa, mas com um olhar diferente”, destacou Hughes.

Cena do jogo The Last of Us, que inspirou série da HBO (Divulgação)
A transformação do consumo cultural
Hughes explicou que a experiência da covid-19 mudou significativamente a maneira como o público lida com histórias de pandemias e zumbis.
“Depois da pandemia, nosso apetite por ser assustado por pandemias diminuiu. Passamos por um trauma coletivo que mexeu com o nosso imaginário“, afirmou o especialista.
Segundo ele, “algumas pessoas até desenvolveram uma espécie de ‘PTSD’ relacionado à pandemia, enquanto outras passaram a ser mais indiferentes com o sofrimento alheio.”
Para ele, a pandemia real causou uma evolução no gênero. “Nos anos 1950 e 60, o medo era nuclear, depois migrou para doenças e superpopulação. Agora, vivendo uma pandemia real, houve uma espécie de ‘fadiga do medo’. Isso influencia o modo como histórias como The Last of Us são recebidas”, disse.
Ciência real e ficção: o que torna The Last of Us único
Hughes participou diretamente do desenvolvimento da narrativa, auxiliando a equipe a compreender o comportamento dos fungos parasitas. “Eles estudaram a fundo o Cordyceps e até encomendaram slime moulds para entender o funcionamento biológico desses organismos”, contou. “O fato de o jogo e a série usarem ciência real para criar o universo ficcional torna tudo mais fascinante e crível.”
Porém, Hughes ressalta que a parte do controle mental em humanos é uma licença criativa.ç “Na natureza, o Cordyceps manipula insetos, mas não humanos. A ideia da infecção humana é uma extrapolação para sustentar a história”, garantiu.
“A ciência é um processo dinâmico. A ficção pode ser uma forma poderosa de popularizar conceitos científicos, mesmo que tome liberdades. O importante é que essas histórias provoquem reflexão e inspirem curiosidade”, disse Hughes.
O futuro das narrativas apocalípticas pós-Covid
Para Hughes, The Last of Us demonstra como a combinação entre fatos científicos e ficção pode continuar atraindo o público, mesmo em um cenário pós-pandêmico.
“A pandemia mudou nosso olhar sobre o medo e a sobrevivência. Agora, o público quer histórias que dialoguem com essa experiência, que tragam não só terror, mas também questionamentos sobre solidariedade e resiliência“, afirmou.
O sucesso da série indica que o gênero zumbi e apocalíptico não está morto, mas evoluindo para se conectar com as novas sensibilidades do público. “A Covid-19 não acabou com o interesse por esses temas, mas mudou a forma de contar e ouvir essas histórias“, resumiu.
O que é o fungo Cordyceps e como ele inspirou The Last of Us
O fungo Cordyceps é um parasita natural que infecta principalmente insetos, como formigas e lagartas, controlando seu sistema nervoso para manipular seu comportamento.
Na natureza, o Cordyceps faz com que o inseto infectado abandone seu habitat, suba em locais elevados e se prenda a galhos ou folhas antes de morrer, criando condições ideais para o fungo crescer e liberar seus esporos, que infectarão outros insetos.
Esse processo foi amplamente documentado em produções como o documentário Planet Earth, da BBC, narrado por David Attenborough. A manipulação comportamental exercida pelo Cordyceps no hospedeiro é um exemplo real e fascinante de parasitismo, mas ocorre apenas em insetos.
A equipe criativa de The Last of Us utilizou esse fenômeno biológico para imaginar uma mutação fictícia do Cordyceps que infecta humanos, tomando controle do cérebro e causando uma pandemia devastadora.
Embora a infecção humana pelo Cordyceps seja uma licença poética da ficção, a base científica do fungo como manipulador comportamental é real e foi fundamental para dar verossimilhança à trama da série e do jogo.
Fonte: Exame