Em maio de 2024, o Rio Grande do Sul parou.
As enchentes que atingiram o estado afetaram infraestrutura urbana e rural, interromperam cadeias produtivas e desorganizaram o dia a dia de empresas, famílias e governos. A tragédia, considerada uma das piores da história recente do estado, teve reflexos diretos sobre a indústria, o comércio, os serviços e o mercado de trabalho.
Um ano depois, os números ajudam a entender o tamanho do estrago — e o ritmo lento e desigual da recuperação.
Apesar da força da catástrofe, o RS terminou 2024 com crescimento de 4,3% na atividade econômica, acima da média nacional (3,5%). É o que aponta um levantamento publicado pelo Banco Central nesta quarta-feira. O dado, no entanto, esconde um detalhe relevante: o bom desempenho foi puxado pela agropecuária, que se recuperou de dois anos de estiagens severas. Excluindo esse setor, o avanço foi de apenas 2,7%, abaixo dos 3,8% registrados nos demais estados.
O boletim do Banco Central mostra que, um ano após as enchentes, ainda há cicatrizes visíveis na indústria, nos serviços e no mercado de trabalho.
” Setorialmente, o impacto imediato e a recuperação subsequente foram heterogêneos, sendo que no geral o setor de serviços foi o mais afetado, sobretudo os prestados às famílias e os associados ao turismo. Padrões semelhantes foram observados no mercado de trabalho.””, afirma o boletim.
Os serviços prestados às famílias, por exemplo, recuaram quase 20% em maio de 2024 e, mesmo no fim do ano, ainda operavam abaixo do nível anterior à tragédia.
O futuro segue incerto. A indústria de transformação gaúcha cresceu apenas 0,6% no ano, bem abaixo dos 3,9% das demais regiões. A exceção foi o comércio, que teve uma alta puxada pelo aumento da demanda por bens de reposição, como móveis, eletrodomésticos e materiais de construção.
Como ficou a indústria
A indústria de transformação do RS foi o setor mais atingido no primeiro momento.
Em maio de 2024, a produção industrial caiu 26,4% em relação ao mês anterior — pior do que em abril de 2020, auge da pandemia. Produtos químicos (-59,2%), veículos automotores (-37,3%) e metalurgia (-39,5%) lideraram as quedas. O tombo foi generalizado: 11 dos 14 segmentos da indústria gaúcha caíram mais de 10%.
Em junho, veio o alívio. A indústria cresceu 35,7% e recuperou parte das perdas com a reabertura de fábricas.
Mesmo assim, no acumulado do ano, o setor teve crescimento de apenas 0,6%, contra 3,9% nas demais regiões. No último trimestre, a produção ainda estava abaixo do normal, puxada por gargalos logísticos e dificuldades com infraestrutura danificada.
Comércio em dois tempos
O varejo reagiu rápido. Supermercados registraram alta de 3,2% em maio, com consumidores antecipando compras por medo de desabastecimento.
Em seguida, vieram os gastos com reposição: móveis e eletrodomésticos cresceram 19,7% em junho; materiais de construção, 22,3%. O comércio ampliado, que inclui veículos e materiais, subiu 8,6% no ano — bem acima dos 5,5% no resto do país.
Foi uma recuperação puxada por necessidade. Famílias reconstruíram casas e substituíram o que foi perdido. Veículos e eletrodomésticos ganharam fôlego. A demanda veio, mas teve natureza emergencial, não estrutural.
Serviços ficaram para trás
O setor de serviços, especialmente os ligados ao turismo e às famílias, foi o que mais sofreu e o que menos conseguiu se recuperar.
Em maio, a queda foi de 31,1% nas atividades turísticas e de 19,8% nos serviços prestados às famílias. Até o fim do ano, ainda estavam 6,5% e 5,2% abaixo dos níveis de 2023.
O fechamento prolongado do aeroporto Salgado Filho e a menor circulação de pessoas dificultaram a retomada. Restaurantes, hotéis e prestadores de serviços de lazer sentiram o baque. Diferente da indústria, não houve uma “recuperação em V”.
Agro: perdas localizadas, alta no ano
As perdas na agropecuária foram severas em algumas áreas, mas mitigadas pelo calendário. Grande parte da colheita de verão já havia sido concluída quando as enchentes vieram.
A soja foi a mais prejudicada, com queda de 16% na estimativa da safra entre abril e dezembro. Ainda assim, a produção total de grãos cresceu 27,5% no ano, por conta da base fraca de comparação de 2023.
Trigo e milho também apresentaram crescimento anual, apesar dos ajustes negativos nas projeções ao longo do ano. O número mascara o impacto real: produtores atingidos diretamente ficaram no prejuízo, mesmo com o avanço agregado da produção estadual.
Mercado de trabalho: admissões postergadas
No auge da crise, em maio e junho, o estado perdeu 23.000 empregos formais — uma queda de 0,8%, enquanto o restante do país criava 293.000 vagas. O problema foi a queda nas contratações: em cenário de incerteza, as empresas postergaram admissões.
A partir de julho, o emprego voltou a crescer, mas em ritmo mais lento.
A população ocupada cresceu 2,1% entre o primeiro e o último trimestre, levemente acima dos 1,9% das demais regiões. Mas os serviços prestados às famílias continuaram empregando menos do que antes, acompanhando a lentidão da recuperação setorial.
Cicatrizes visíveis
Excluindo a agropecuária, o desempenho econômico do RS em 2024 foi inferior ao do restante do país. A tragédia climática expôs a vulnerabilidade da economia estadual diante de eventos extremos. A resposta das empresas foi rápida em alguns setores, mas os efeitos foram desiguais — e as marcas, persistentes.
Há muito trabalho a ser feito por ali.
Fonte: Exame