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Nos 60 anos da TV Globo, a missão de ser “anti-algoritmo”, diz diretor-executivo

Há muitos desafios rondando o aniversário de 60 anos da TV Globo, a maior emissora de televisão aberta do Brasil, parte de um grupo que faturou 16 bilhões de reais no ano passado.

A concorrência internacional, com a força do streaming, já não é um futuro — é um presente. O futebol, que por décadas foi uma exclusividade quase absoluta da emissora carioca, hoje é dividido com outros canais e plataformas. E o ativo mais precioso da empresa — o tempo de atenção do público — virou um campo de batalha disputado minuto a minuto com redes sociais, YouTube, podcasts e aplicativos de vídeo.

Ainda assim, nenhuma outra emissora brasileira consegue alcançar o que a TV Globo alcança. Em 2024, 185 milhões de brasileiros foram impactados, de alguma forma, pelos seus conteúdos​. O alcance da TV Globo chega a 94% da população, com 123 emissoras (5 próprias e 118 afiliadas) e uma presença dominante que representa 42% de todo o consumo de vídeo no Brasil.

Ao todo, são mais de 7.500 horas anuais de produção original, com destaque para 2.700 horas de jornalismo, 1.100 horas de novelas e 200 transmissões de futebol​.

Em entrevista à EXAME, Amauri Soares, diretor-executivo da TV Globo e dos Estúdios Globo, falou sobre o desafio de modernizar a maior vitrine de histórias brasileiras sem perder sua principal vocação: ser a praça pública onde o Brasil se encontra — e onde, mais do que nunca, cada minuto vale ouro.

Soares está na Globo desde 1987. Foi editor-chefe do Jornal Nacional, diretor de jornalismo em São Paulo e diretor executivo da Globo Internacional. Também cuidou da área de programação da Globo e, em 2020, tornou-se diretor-executivo da TV Globo, após unificação das empresas do grupo. Neste cargo, Soares é responsável por tomar a decisão final sobre o conteúdo que vai ao ar na grade da emissora.

No futuro da emissora, a aposta está em transformar a televisão aberta em uma experiência cada vez mais personalizada, com a chegada da chamada TV 3.0 — um novo padrão tecnológico que permitirá a personalização dos conteúdos ao gosto do telespectador. Sem deixar de ser popular, a Globo quer se tornar, também, individual.

Mas, mesmo num ambiente de algoritmos que moldam bolhas e recortes de realidade, a Globo quer carregar uma missão que se tornou sua marca: ser um espaço coletivo de encontro, e não uma soma de nichos isolados. “Nossa ação é anti-algoritmo”, define Amauri Soares. A emissora quer continuar propondo temas, pautas e histórias para toda a sociedade — e não apenas seguir preferências preditivas de cada usuário.

Que TV Globo é a que chega aos 60 anos?
É uma TV Globo que honra muito a construção coletiva dos últimos 60 anos, mas que também é muito interessada no futuro. Quis o destino que a TV Globo fizesse 60 anos praticamente no mês em que a televisão 3.0 está sendo regulamentada no Brasil. O decreto está para ser assinado. [O decreto deve definir a tecnologia a ser utilizada, o cronograma de implantação e outras questões para a transição da TV aberta para o novo padrão]. Muita coisa mudou. Hoje, somos uma televisão multiplataforma. Estamos no sinal do televisor, mas também na caixinha de TV paga, no celular e no notebook. Mas muita coisa não mudou. A essência da TV Globo não mudou. Seguimos sendo uma televisão brasileira, de um grupo de mídia brasileiro, cujo negócio é o Brasil. A origem, a inspiração e o destino da Globo são o Brasil. Esse é o nosso principal diferencial. E fazemos isso por meio de nossos conteúdos. São histórias brasileiras, para os brasileiros. Então, temos que honrar esse passado, e ter clareza do nosso diferencial, da nossa relação com a sociedade.

A TV Globo diz ser um termômetro do Brasil. Mas como traduzir um país tão heterogênio?
O negócio da comunicação em massa, e da Globo em específico, é representar a sociedade no vídeo, na tela. Acho que esse é um bom jeito de definir o que buscamos fazer. Ao buscar representar a sociedade na tela, atraímos a atenção dessa sociedade, que passa a se ver na televisão. E com isso, a sociedade se transforma. Por isso que andar com a sociedade exige muita troca, muita escuta, muita diversidade de opiniões e de criações. A sociedade brasileira é complexa e diversa. É um desafio ter uma escuta e uma sensabilidade disponível para tanta diversidade, mas ao mesmo tempo, é um privilégio. Como fazemos isso? Trazendo diversidade para dentro das áreas de criação e consolidando por uma rede de 120 emissoras afiliadas pelo Brasil. São emissoras que pertencem a grupos de comunicação regionais tradicionais, com cultura local, com profundas raízes locais. A rede de afiliadas é um enorme diferencial estratégico da Globo.

Como fazer a gestão de 120 afiliadas e manter um padrão de qualidade?
Toda TV aberta tem sua rede de afiliadas. O diferencial da Globo é a qualidade dessa rede de afiliadas. São grupos muito consistentes, interessados, apaixonados em comunicação. Isso facilita muita coisa. Quando um grupo regional se torna afiliado da Globo, ele faz um pacto de qualidade. E compartilhamos nossa jornada de qualidade, de tecnologia e de inovação. Todo o conhecimento que nós extraímos da sociedade por meio de pesquisas é imediatamente disponibilizada para as afiliadas. Nós temos programas de formação e capacitação que são comuns, assim como premiações internas. É sempre como incentivo para que a gente ande junto.

A TV Globo está mais diversa na tela. As protagonistas das três novelas da emissora são mulheres pretas. Mas isso é recente. Qual a sua avaliação sobre as políticas de diversidade em conteúdo? Em que etapa está?
A diversidade é um processo permanente. Não tem uma meta que se esgota. A empresa tem metas corporativas de diversidade para contratação e retenção. Quando se trata de conteúdo, só a meta não resolve. É preciso construir primeiro uma consciência. E para isso, é preciso construir estruturas e lideranças capazes de manter esse processo vivo permanentemente. Nosso processo de tomada de consciência da falta de representação do Brasil não branco no vídeo se deu em um determinado momento. Podemos discutir se demorou ou não, mas aconteceu. Nós agimos e passamos a implantar um processo que nos trouxesse a diversidade que precisávamos. O processo hoje está estruturado, é fluído nos Estúdios Globo, na criação de conteúdo, no jornalismo e no esporte. E ele só é sustentável no vídeo porque ele também acontece atrás das câmeras. Para ter uma novela onde a protagonista é uma mulher negra, você precisa ter autores negros, figurinistas negros, maquiadores, cabeleireiros e, evidentemente, atores negros para viverem essas personagens.

E a recepção do público?
Toda vez que uma pessoa negra ocupa um espaço de poder e de grande visibilidade, vai provocar estranhamento. Porque é novo, porque as pessoas não estavam acostumadas. Nós, como a televisão mais vista do Brasil, temos uma capacidade muito grande de ajudar as pessoas a compreenderem e normalizarem em si novas realidades. Então, na medida em que nós vamos mostrando essas histórias, este elenco negro, essa galeria de personagens negros, nós estamos ajudando a construir esse entendimento.

O que é a televisão 3.0? Por que ela é importante para a Globo e para o setor?
O grande atributo da televisão aberta é a da comunicação de um para todos, ao mesmo tempo. Milhões e milhões de pessoas por minuto sendo impactadas na televisão. Mas nos últimos anos, as redes sociais trouxeram outro tipo de comunicação: a de falar um para um. Até aqui, a comunicação em massa falava com todos ao mesmo tempo. Já a comunicação de algoritmo fala um para um. A TV 3.0 dá para a comunicação de massa, para a televisão especificamente, a capacidade de também falar um para um, sem perder a capacidade de falar com todos. A TV 3.0 viabiliza uma customização.

Como?
Você poderá estar assistindo a um jogo de futebol, por exemplo, e escolher se escuta o áudio do narrador, ou da torcida de um determinado time. Você poderá abrir um chat com outros torcedores que estão assistindo, cada um de sua casa, para conversar. No final do jogo, você poderá comprar a camisa do seu time pela televisão. Num telejornal regional, você pode acessar, pelo controle remoto, a previsão do tempo de sua cidade. Poderá votar num participante do Big Brother.

E para a publicidade?
Para a publicidade, o ganho é enorme, porque teremos a possibilidade de fazer publicidade dirigida, individual. Se você estiver vendo televisão logado, saberemos do seu perfil e conseguiremos direcionar publicidades específicas, mas sem perder a possibilidade de mandar publicidade igual para todo mundo, quando for necessário para a campanha.

Será preciso educar o mercado?
O mercado já está educado porque já faz isso nas redes sociais. E já começamos a fazer publicidade dirigida no Globoplay. A diferença é que vamos fazer isso também no sinal do ar.

Quanto tempo para essa tecnologia chegar na maioria dos televisores? Terá um trabalho de divulgação assim como foi com os conversores de sinal digital na era do HDTV?
Estamos fazendo o dever de casa já faz um tempo. Das 15 regiões metropolitanas do Brasil em que audiência é auferida, nós já estamos prontos. As emissoras precisam fazer seus deveres de casa, se atualizarem, mas eu tenho a impressão que isso vai andar bastante rápido, porque há muito interesse. Os benefícios são enormes.

Hoje, o público assiste os conteúdos da TV Globo também nas redes sociais, no Globoplay, em outras plataformas. Mas a audiência só é auferida no sinal de antena. Como a Globo lida com essa fragmentação?
Estamos fazendo testes para medir audiência cross plataforma. Já faz muito tempo que a nossa audiência não é apenas linear. Eu tenho a TV Globo, que está linear, mas tem o Globoplay e recortes retransmitidos por milhões de perfis em plataformas digitais. A presença do Big Brother ou da novela Vale Tudo no TikTok, no Instagram, no Twitter, no YouTube, é maciça, e nós não temos uma métrica que capture esse consumo. Não é um desafio só no Brasil. É um desafio no mundo inteiro. Os mercados todos estão discutindo isso. No Brasil, a discussão é muito viva. Ela envolve agências de propaganda, os anunciantes, as redes de TV, as plataformas digitais. E a Kantar, a empresa que mede a audiência, está super aberta e tentando também ajudar. Tem várias novas tecnologias surgindo de métrica que estão sendo testadas. O mercado todo sabe que o alcance de um conteúdo da Globo não se limita à exibição dele na TV, mas era preciso ter um dado. E um dado confiável, auditável.

Falando em mídias sociais, como a TV Globo vê o universo de influencers? De que maneira eles são uma ameaça, de que maneira são aliados?
São novo players do nosso mercado de mídia, e como em todos segmentos, há quem faça coisas super bacanas, há outras que nem tanto. Mas quero deixar uma coisa muito clara: influenciador não substitui ator e atriz profissional. Nós não temos nenhuma política de substituição. Pelo contrário, a nossa crença é no profissionalismo, na técnica, no desenvolvimento da formação dos artistas para toda a cadeia de produção. Nós temos um portfólio de programas de variedades e de programas de reality shows com um território muito bacana para a participação de influenciadores. Mas não na dramaturgia. Dramaturgia é para ator e atriz no vídeo. Claro que influenciadores podem se tornar um ator e uma atriz profissional, mas pra gente uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa.

O que vocês levam em conta para decidir qual será a próxima novela da Globo?
Primeiro, levamos em consideração qual é o perfil do slot em que ela está. Se é novela das 6, das 7 ou das 9. Depois, olhamos quais foram as histórias que foram contadas recentemente. Depois, olhamos para os atributos que buscamos para as histórias: inovação, agilidade, potencial de engajamento, representação da sociedade, personagens aspiracionais, mensagens positivas para a sociedade. E desde o ano passado para cá, há sempre pelo menos duas sinopses disputando a vaga. Aí, a que estiver mais adiantada, mais madura e mais adequada para aquele momento é escolhida.

Qual é a sua avaliação sobre as primeiras semanas de Vale Tudo?
Vale Tudo superou todas as nossas expectativas. Vale Tudo apresenta crescimento de audiência em todos os públicos, em todas as praças, desde que estreou. E mais do que isso: estamos muito felizes com o resultado artístico de Vale Tudo. Se trata, talvez, do texto de novela mais respeitado, considerado por muitos de nós aqui como a melhor telenovela já feita. E o trabalho que a Manuela Dias fez de atualização da história, com a preservação das intenções dos autores originais, é brilhante. E o diretor Paulo Silvestrini construiu uma realização visual, estética, muito contemporânea, mas que também respeita a estética original da novela.

Ainda assim, o mercado de São Paulo parece não engatar tanto na história como em outras praças. Isso aconteceu recentemente em outros produtos também, como na novela Mania de Você, que ia bem no Rio, mas não tão bem em São Paulo. O mercado de São Paulo mudou?
São Paulo sempre foi diferente do restante. É a maior região metropolitana do Brasil, é onde as pessoas passam muito tempo no transporte coletivo. Os horários do cotidiano são diferentes. Saem mais cedo, chegam mais tarde. A vida urbana de São Paulo é diferente da vida urbana em outras regiões metropolitanas menores. Esse é um aspecto. O outro aspecto é que São Paulo tem interesse num determinado tipo de história. São Paulo assiste as histórias, mas sempre buscando conexão com os seus assuntos mais urgentes. E esse link de interesses com São Paulo, às vezes acontecem mais, às vezes, menos. Precisamos sempre andar no processo de ovuir São Paulo, viver e conversar com São Paulo. E garantir que esses pontos de interesse da sociedade de São Paulo sejam atendidos, também, na dramaturgia. Uma novela praiana como Mania de Você teve uma conexão maior com a região metropolitana do Rio do que a de São Paulo.

A TV Globo adotou, nos últimos anos, um modelo de contratação de artistas por obra. Visto de agora, quais foram as vantagens e desvantagens deste modelo?
Só havia um modelo de contratação de talentos do vídeo, que eram os contratos de prazo longo com exclusividade total. A empresa contratava todos os talentos do vídeo, atores, atrizes, autores e roteristas. Este modelo tem uma vantagem evidente, que é o nível de exclusividade. Por outro lado, tinha duas desvantagens. A principal era o custo operacional, insustentável. Você ter todas essas pessoas, todos esses criadores, todos esses grandes grupos de profissionais contratados com exclusividade total é muito caro, porque você não consegue usá-los o tempo todo, ao mesmo tempo, mas mesmo assim, precisa pagar pelo tempo todo. Mas tinha também uma desvantagem para os próprios contratados, que era a impossibilidade de fazer outras coisas, de fazer projetos próprios. Hoje nós temos uma diversidade de modelos. Temos os contratos de prazo longo, com exclusividade para um grupo de atores e atrizes. Temos também contratos vitalícios com alguns de nossos talentos veteranos com uma relação histórica com a Globo. E nós temos contratos por obra, quando o contratado sabe exatamente para o que ele está sendo contratado, e em que período de tempo ele terá exclusividade com a Globo. E assim vamos gerindo. No caso de autores de novela, aa gente tem contratos de longo prazo com múltiplas entregas, mas trouxemos mais recentemente, autores que estavam fora da Globo para fazer obras específicas.

A TV aberta vai acabar?
A TV aberta preto e branco acabou. A TV aberta analógica acabou. A TV 2.0 acabou. E nasce a TV 3.0. A capacidade da televisão aberta de se adaptar às novas tecnologias e aproveitar as oportunidades para oferecer aquilo que só ela consegue oferecer é o que faz da tv perene.

Qual é o futuro da TV Globo?
A Globo chega aos 60 anos com a capacidade de ser multiplataforma, digital, multijanela e, agora, também personalizada — sem perder seu maior atributo: falar com o país inteiro, simultaneamente, a cada minuto. Essa é uma capacidade que nenhum player digital tem, porque não há infraestrutura capaz de sustentar essa simultaneidade em larga escala. Nós conseguimos colocar 60, 70, até 80 milhões de pessoas por minuto assistindo a um jogo de futebol importante, a um evento decisivo, ou ao final de um capítulo marcante de novela. Isso só é possível com a televisão aberta. O futuro, portanto, está nessa combinação poderosa entre inovação tecnológica e preservação da vocação de conversar com a sociedade. No caso da Globo, isso se expressa por meio da contação de histórias brasileiras, da apresentação de diferentes visões de mundo e de Brasil — diferentes formas de viver, de amar, de caminhar pela vida. Com isso, buscamos construir alteridade, respeito, tolerância e o sentido de convivência em comunidade. Nesse sentido, nossa atuação é antialgoritmica: promovemos a abertura e a diversidade, e não recortes cada vez mais restritivos da realidade. Seguimos propondo temas e pautas relevantes — na dramaturgia, no entretenimento, no jornalismo. Às vezes você concorda, às vezes discorda. Mas é nesse exercício que aprendemos a respeitar a opinião do outro. Nosso destino continua sendo esse: ser uma praça pública onde todo mundo tem lugar e tem voz. E isso permanece como nosso maior compromisso, aos 60 anos.

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