“E se eu tivesse feito diferente?” Essa é uma das frases que mais retumba em minha cabeça por toda a minha vida. Diferente dos videogames, no mundo real, não há saves, checkpoints ou qualquer outro recurso que permita que voltemos e decidamos de outra forma. Nossas escolhas têm um peso e geram consequências, as quais temos que lidar, sejam elas positivas ou não. Esse é o preço do livre-arbítrio.
Porém, cada uma dessas decisões nos trouxeram a este exato momento, em que estou por meio deste me comunicando com vocês. Caso eu não tivesse aberto um canal no YouTube com 13 anos, não tivesse feito a minha faculdade e não tivesse aplicado para aquela vaga em 2017, eu não estaria aqui.
Onde eu poderia estar, então? Trabalhando como programador para uma startup na Faria Lima, escrevendo sobre cotidiano para a Folha de São Paulo, sendo assistente de câmera em uma produtora de filmes publicitários ou, quem sabe, montando um projeto para um mestrado em teoria da comunicação.
Nada disso aconteceu nessa nossa realidade, mas e em outras? Não só isso, mas se eu pudesse encontrar essas versões alternativas, como seria a nossa interação? Eu me reconheceria nessas outras pessoas? Eu conseguiria trabalhar com elas se a minha vida dependesse disso? Partindo dessa pequena filosofia de boteco que venho falar com vocês sobre The Alters, jogo narrativo de gerenciamento desenvolvido pela polonesa 11 bit, que traz reflexões sobre teoria do caos em um cenário sci-fi que deixaria Andy Weir e Stanisław Lem bem orgulhosos.
Todos estão mortos, menos você
A premissa de “um único sobrevivente em um planeta alienígena” é meio batida. Há centenas de obras que usam desse clichê como ponto inicial da trama. Um deles é o meu querido Perdido em Marte, originalmente um livro posteriormente adaptado para o cinema pelas mãos do mestre imperfeito Ridley Scott. Aqui, contudo, as similaridades acabam praticamente por aí.
Temos um protagonista sem poderes especiais ou habilidades incríveis, mas dedicado a sobreviver. Jan Dolski é um cara normal, com muitos erros e acertos na sua vida que levaram ele até o Projeto Dolly, missão com objetivo de juntar a substância Rapidium. Nesse momento de desespero, ele acaba descobrindo que existe uma saída, ainda que ela não seja ética e moralmente correta: criar uma tripulação de clones seus.

Na verdade, clone não é a palavra correta. A partir do seu DNA, ele cria versões alternativas suas que tomaram decisões diferentes em algum momento da vida e isso gerou resultados completamente diferentes. Ter ajudado uma pessoa em apuros durante a infância fez com que Jan tivesse conhecido um médico que o colocou no mesmo caminho. Confrontar seu pai ao invés de fugir de casa o levou a ser um faz tudo de primeira. Se manter na carreira acadêmica permitiu que ele se desenvolvesse como um cientista renomado.
Um clone, muitas versões: a proposta de The Alters
O brilho da premissa de The Alters é misturar conceitos como Teoria do Caos e universos paralelos para apresentar um resultado inusitado e inovador, ao mesmo tempo que traz questionamentos filosóficos por trás disso.
Jan os criou a sua imagem e semelhança, atuando como uma espécie de Deus. Se eles nascem no mundo naquele momento, todas as lembranças que carregam são falsas? A existência deles tem como único propósito auxiliar o protagonista a sair de lá? O quanto seus sentimentos importam? O quão real são suas relações com as pessoas na Terra?
Esses pontos são trazidos constantemente nos extremamente bem escritos diálogos que temos com esses personagens. Eles partem de estereótipos e clichês e vão se desenvolvendo de maneira sensível, mesmo aqueles mais resistentes, se assim posso dizer.
Gerenciar, sobreviver, sentir
Além de questionamentos filosóficos, sendo o capitão dessa missão, o jogador precisa tomar constantemente grandes decisões que vão impactar o desenrolar da história e afetar a maneira como eles te enxergam.
Como um jogo narrativo de gerenciamento, você deve imaginar que esses diálogos vão além de só desenvolvimento de relacionamento e da trama. A moral deles impacta o seu empenho durante a jornada e também o quão satisfeito eles estão com você como capitão.
Admito que, por não ser um aficionado por jogos de administração e por conhecer o histórico da 11 bit, decidi não me arriscar na dificuldade, o que muito possivelmente trouxe uma facilitação exacerbada na forma com que eu me relacionava com eles. Os dois únicos momentos de ruptura mais fortes foram um na metade, consequência de uma grande decisão na trama, e outro ao final do jogo, quando os recursos eram baixos e o tempo era curto. Mesmo em um nível mais fácil, a desenvolvedora poderia ter desafiado mais os jogadores.
Falando em gerenciamento, há duas outras questões que devemos lidar durante a campanha, a primeira sendo os recursos. Para juntar metais, minerais, Rapidium e outros você precisa achar áreas específicas no mapa com eles, montar postos de escavação, conectá-los com a base e trabalhar muito para juntá-los.
Tudo o que você faz precisa desses recursos: criar comida, itens, expandir a base e afins. Por sorte, você pode indicar qual atividade cada alter vai fazer durante o dia e eles, ao finalizar alguma, sugerem automaticamente outra para fazerem. Como em diversos momentos você vai estar explorando ou montando alguma estratégia do que fazer a seguir, isso é uma mão na roda gigante, diminuindo alguns aspectos de microgerenciamento desnecessário.

Por fim, temos o aspecto mais fundamental do jogo, que é o tempo. Cada dia possui 24 horas, cada hora sendo um minuto do tempo real. Havendo a necessidade do seu personagem dormir para descansar (e salvar o progresso), temos aproximadamente 15 minutos por dia para juntar recursos, interagir com os alters, explorar o mapa e escapar de lá.
Dentro da trama, o tempo tem um papel ainda mais importante. Quando o sol oficialmente nascer, ele enviará uma onde de radiação tão grande que vai acabar com você e sua nave. Ou seja, a melhor forma de fugir o mais longe possível no menor tempo possível.
Como não há uma certeza de quando o sol vai chegar, há sempre uma sensação de desespero para resolver tudo quanto antes de dar o fora para o próximo mapa. É uma dose de ansiedade controlada muitíssimo bem-vinda.
A progressão durante o gameplay
Dividido em três atos, as coisas vão melhorando com o passar no tempo, com novos equipamentos e alters, facilitando a missão, mas exigindo cada vez mais recursos, gerenciamento de moral e atividade dos seus companheiros e afins. Basicamente, é aquele velho meme “eu não tenho um minuto de paz nesse c******”.
A exploração também ganha facilitações e complicações. Ao mesmo tempo que você pode criar postos de extração melhores e até autônomos, gastar menos energia para escalar e descobrir novos tipos de recursos, há também anomalias para enfrentar. São seres invisíveis que tem habilidades diferentes, te atrapalhando. Ainda que a ameaça não seja super impactante, ela traz uma dinâmica diferente para a jogatina.

Agora, uma das coisas que eu mais gastei tempo fazendo foi a montagem da base. Bem parecida com a organização da maleta de Resident Evil 4, você precisa conectar tudo nos espaços disponíveis. Cada vez que um novo módulo é colocado, o custo para a continuação da aventura aumenta, mas desbloqueia opções muito interessantes.
Sem brincadeira, das mais de 18 horas de jogo que tenho registradas, pelo menos 4 foram só montando a base. A sensação era uma mistura de Tetris com The Sims, já que não era necessário que os dois dormitórios dos Alters ficassem juntos, mas eu queria que ficassem, pois, na minha cabeça, fazia mais sentido.
A questão é que, mesmo adicionando novidades com o passar dos atos, tornando a aventura menos cansativa, essas diferenças não mudam completamente a estrutura da gameplay. Novamente, para quem jogar na dificuldade mais difícil, isso é uma benção completa, mas não foi exatamente o meu caso. Isso faz o jogo perder seu impacto ou mesmo trato isso como um defeito? Não, mas mais variedade seria muito bem-vinda.
Isso me fez lembrar de uma reflexão muito válida sobre o jogo. Ele não é um grande jogo de aventura, nem de gerenciamento, muito menos de narrativa, mas o seu grande mérito foi mesclar tudo isso de uma maneira funcional. The Alters escolheu não brilhar individualmente, mas trabalhar em equipe para entregar um grande resultado, ressoando bem com toda a temática do jogo, se parar pra pensar um pouco.
Isso faz com que um dos seus grandes méritos seja uma experiência imersiva, imprevisível, engajante e que, de forma geral, alcançou as minhas expectativas. Foi um prazer vivenciar uma história sci-fi tão criativa com uma apresentação que só os videogames poderiam apresentar, aprofundando tramas secundárias e te colocando para vivenciar as problemáticas na pele quase que em tempo real.
Porém, houve diversas coisas que quebraram profundamente a minha imersão e tornaram a reta final bem cansativa, mostrando que, mesmo sendo adiado algumas vezes, The Alters precisava de mais tempo para otimização.
Os problemas na jornada
O menor dos problemas foram diversos textos não traduzidos. Ainda que sem dublagem, o jogo está muito bem localizado para o português brasileiro, mas tiveram diversos momentos que me deparei com diálogos ou descrições de missões em inglês. Eu não tive problema, já que sei falar o idioma, mas isso com certeza é algo que pode atrapalhar pessoas que não entendem. No meu caso, acabou me tirando por diversos momentos do meu estado de foco total.
Agora, indo para os problemas mais sérios, temos a péssima otimização, mesmo em PCs mais fortes. O que começava com 70 FPS ia caindo de forma gradual e se estabilizava, a ponto de eu reiniciar o jogo pra não ter que lidar com 30 quadros por segundo. Algumas animações de transições entre menus também afetavam essa questão, apresentando visíveis slowdowns.

E, fechando com “chave de ouro”, pelo menos 4 vezes o jogo crashava e congelava completamente o meu computador, sendo necessário reiniciar para voltar a jogar. Como os saves acontecem quando você acorda na cabine do capitão, todo o progresso era perdido se você estivesse no final de um dia. Isso era ainda mais frustrante se aquele tivesse sido um dia de exploração, em que não há acelerações de tempo como ocorrem em algumas atividades específicas.
Isso acabou me deixando um gosto levemente amargo ao acabar a trama, que, junto de um encerramento sem grande implicações reais, só um peso filosófico da sua escolha, tornaram grande parte da jornada bem melhor do que a chegada ao nosso objetivo final.
Vale a pena?
The Alters é uma experiência impar no mundo dos videogames, mesclando diversos aspectos diferentes para entregar um produto conciso, fechado e reflexivo. É o tipo de trama que poderia ter saído da mente de grandes escritores de ficção científica, mas só podem ser realmente sentidas quando você assume o papel de Jan Dolski.
Para uma pessoa com pouca afinidade com jogos de gerenciamento, trouxe desafios que me despertaram uma ansiedade constante de “será que vai dar certo?” Infelizmente, sua otimização tirou bastante da aura imersiva que ele criou em mim, impactando a conclusão da aventura. De qualquer forma, é uma experiência imperdível para quem gosta de uma boa história sci-fi e está aberto a jogos que fogem do padrão da indústria.
Nota do Voxel: 85
Pontos positivos (prós):
- História envolvente e inovadora de ficção cientifica;
- Mescla de gêneros que entregam um produto consiso e fechado;
- Sistema de tempo que faz você sentir a história em tempo real;
- Boas opções para o gerenciamento e exploração;
- Diálogos muito bem escritos e personagens bem desenvolvidos;
- Montagem da base complexa.
Pontos negativos (contras):
- Facilidade na administração da moral dos alters;
- Problemas de tradução;
- Constantes slowdowns e quedas de quadros;
- Vários congelamentos que impactaram na experiência.
The Alters chega em 13 de junho no PC, PS5 e Xbox Series S e X. O game também estreia direto no Xbox Game Pass. Uma cópia para computador foi cedida pela 11 Bit Studios para a realização da análise.
Fonte: TecMundo